A [agri]doce ilusão de Justiça

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Dia desses fui surpreendida por uma citação que remeteu à justiça de Deus que até me deu arrepios.
O arrepio foi por notar tamanha vontade de vingança, justiça própria ou algo que tenha alguma “pretensão de semelhança no fundo” com o que a pessoa entende ser “justiça”. Sim, você leu certo, usando aspas porque o conceito de justiça como algo fixo e imutável é uma [agri]doce ilusão. Justiça é um conceito tão dinâmico quanto a moda ou o consenso de “bom senso”.
Houve um tempo (e ainda há) em que fazer uma prova era considerado “uma motivo justo” para absolvição. Daí deriva o conceito de “prova” do direito contemporâneo, inclusive. Tão volúvel quanto o discernimento de um juiz corrupto, tão (i)lógico quanto os critérios de um déspota, é assim que se caracteriza uma causa como justa. O melhor em oratória, o melhor de uma corrida de 100 metros, o significado dos números na cabala, o que consegue decifrar um enigma, o que possui o favor do rei, o que tem o melhor padrão de beleza estética, o que sobreviver em uma arena de gladiadores e animais ferozes.
Isso era justiça.
Em muitos lugares, isso ainda é justiça.

Justiça não se define assim, como o preto e o branco: se tem pigmento é preto, do contrário, é branco. Ou como o quente e o frio: se há agitação de partículas, é quente, se não, é frio. Ou ainda como o escuro e o claro: se há luz, é claro, se não há é escuro. E não venha me dizer que a justiça é justa porque obedece às leis, mesmo porque, as leis não surgem do céu, elas são feitas por meio de concordâncias (ou quase isso) entre pessoas que em geral representam alguns grupos sociais. São um exercício de poder. Mas esse é só um “rascunho no papel” pra explicar de forma simples o conceito complexo de justiça. Ele não se faz apenas de leis, é fruto de uma conjuntura cultural, mitos e crenças, valores e juízos de pessoas que vivem em comunidade (via de regra, por opção), com interesses conflitantes e disposições divergentes para chegar a uma “quase-pretensa” solução de convívio harmônico. Disso deriva o conceito de justiça.

Porém, como tudo na existência, esse é um conceito que flui pelas águas do tempo e do espaço… toma formas diferentes em lugares diferentes em diferentes épocas .

Ouço pessoas falando de justiça como se fossem as águas paradas em um tanque, ou em um poço: estão ali e não vão mudar, não vão se renovar. Ocorre exatamente o oposto: ela é tão dinâmica e fluida quanto as águas de um rio cuja fonte é considerada incessante, mas, dada a finitude dos recursos (e da vida), sabemos que ela algum dia ela vai secar. Não é estática. Não é estanque.
Talvez esteja mais pra uma comparação com relação entre as massas de ar afetadas pelas diferenças de temperatura e pressão. Se pudermos traçar um paralelo, esses dois elemento equivalem ao contínuo espaço-tempo: mudar um muda o outro.
E o elemento adicional determinante dessa composição é o mesmo elemento determinante de toda existência: o ser humano, suas percepções e conclusões. Suas intenções e provocações.
Eis então os fundamentos do conceito de justiça: o tempo, o espaço e o homem se relacionando consigo e com o meio. Mudar um, necessariamente mudará o outro.

Enquanto o homem for homem, instável, inventivo e genial: a justiça não será justa, como nunca foi.

Talvez se atentarmos para o único homem que, segundo a história (narrada por muitos outros homens), conseguiu romper uma das leis fundamentais da vida: a lei da morte, talvez com o legado dele, a gente comece a entender o porquê de a justiça ser uma ilusão.
Segundo ele, a “lei primeira” (e última) devia ser “lei nenhuma”: a lei do amor. Amar a todos sempre, sem exceção. Oferecer a túnica, dar a outra face, andar mais um quilômetro, perdoar as dívidas, sofrer o dano e seguir a vida.
Agora, me ajude a entender: isso parece justo?
Acho que a resposta seria um contundente NÃO!
Sabe por quê?
Porque a justiça é uma ilusão. Nossos critérios do que é justo são comparados a panos sujos de sangue de menstruação – ecati, que nojo!
É nojento porque justiça, justiça MESMO… mesmo, mesmo, ela não existe, não é natural, não é real.

E se a lei do amor é a única lei válida, logo, a única justiça possível é a ausência de todas as leis que não sejam a lei do amor. É perdoar a dívida, é ser devedor, é ter como se não tivesse, é doar espontaneamente. É ser o que se pode ser. É errar. É acertar. É tentar.
O amor é incoerente, é ilógico, incompreensível.
É ser você na sua mais pura essência.
Isso é ser justo: é ser verdadeiro, é ser real.

A ilusão da justiça é essa: ela não existe, nossos critérios de isonomia, igualdade, “justiça” vão sempre perder, porque o amor, ele é injusto e sempre será.
Ele é a única lei válida. E até ele não se pode obrigar.

Ame se puder, como puder, o quanto puder, se puder e, principalmente:
Ame se quiser.

Amar é a única lei (In)justa e (des)obrigatória que pode trazer justiça, realidade e vida.

Ah, mas eu esqueci: a “lei justa”, ela não existe… é uma ilusão… uma utopia.
Talvez seja essa utopia do amor-(in)justo que vai nos dar ânimo para caminhar em busca da felicidade…
E quem disse que nós fomos feitos para a felicidade?
(Segundo seus escritos, Freud insistia nessa pergunta.)

Acho que deve ser mais uma daquelas ilusões que nos movem… assim como a ilusão do amor-injusto, felicidade é utopia.

Mas, afinal, pra que servem essas ilusões?
Pra que serve a utopia?
Eduardo Galeano arriscou uma resposta:
“Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
E seguimos caminhando…
fazendo do caminhar o caminho
fazendo o caminho a caminhar

De preferência, sem a ilusão de justiça
😉

 

 

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